O curioso caso da laje treliçada
Um dos casos que me intrigou por bastante tempo após a graduação foi a aparente impossibilidade de se usar lajes treliçadas em balanço. Desde moleque, sempre estive dentro de obra — e por mais estranho que possa parecer, as únicas lajes com as quais tive contato até entrar na faculdade foram as treliçadas.
Por uma questão geográfica, econômica ou talvez até cultural, esse sempre foi o sistema hegemônico nas obras da região onde nasci. Mesmo depois de me mudar para um centro urbano com outros parâmetros, ainda era notável a dominância da treliçada sobre os demais sistemas.
O que só tornou mais marcante a minha surpresa — ou melhor, meu espanto — ao ser informado por professores (e mais tarde por colegas) que esse sistema era... limitado. Tecnicamente limitado. A rotina da graduação exige tanto foco na sobrevivência que essa surpresa foi abafada e arquivada sem maiores questionamentos. Havia prazos, provas, normas. E, como tantos outros, segui o fluxo. Aceitei o que me foi dito. E segui.
Mais tarde, já no mercado, fui chamado para um projeto estrutural de uma casa simples, menos de 200 m². Nada demais. Com exceção de um detalhe: a casa teria um beiral de 60 cm ao redor de todo o perímetro. Nada que me preocupasse. Propus uma solução usando laje maciça — não havia, em minha cabeça, motivo técnico plausível para utilizar laje treliçada ali. Afinal, ela não pode trabalhar em balanço, certo?
Errado. O cliente não só discordou como se recusou terminantemente a executar da forma que propus. E, naquele momento, em minha convicção recém-formada e alimentada por manuais e doutrinas universitárias, associei a recusa à ignorância. Ora, ele não estudou. Não sabe do que está falando. É natural que não compreenda o risco. Decidi então conversar com o empreiteiro responsável. Imaginei que alguém com experiência em campo traria juízo ao cliente. Resultado: o construtor também argumentava a favor do uso da laje treliçada no beiral.
Foi necessário que um colega engenheiro — mais experiente e menos cheio de certezas — tomasse a frente e me mostrasse, com uma simplicidade quase ofensiva, o tamanho da minha limitação cognitiva.
A lição veio como um soco seco. Eu voltei a enxergar o que sempre esteve lá. Voltei a conhecer o que eu já sabia. Por décadas, a laje treliçada supriu a demanda da maior parte das obras no Brasil — especialmente as de pequeno porte. Eu cresci vendo beirais executados com ela. E funcionavam. Sempre funcionaram.
Mas minha complacência intelectual, e a autoridade conferida à palavra acadêmica e de gurus das internet, me negaram uma conclusão que era trivial.
O sentimento de realização por ter sido "corrigido" foi rapidamente substituído por irritação. Por que eu terceirizei o meu pensar?
É claro que é possível usar laje treliçada em balanço — desde que isso seja dimensionado e planejado.
"Mas ela foi criada pra ser apoiada nas extremidades."
Sim. A vigota é mais eficiente quando biapoiada. Mas isso não quer dizer que ela não possa ser usada em outras condições. Ou você é do tipo que acha que é proibido comer arroz com colher?
"Não tem aço na parte de cima."
De fato, a maior parte da armadura está concentrada na parte inferior, já que foi dimensionada para tração na parte de baixo. Se o local sob tração se inverte, inverte-se o local do aço o colocando na capa.
"Não tem concreto na parte de baixo."
Mentira. Tem, sim. A menos que você seja cego, é claramente possível ver concreto na vigota. Agora, se após a análise estrutural for constatado que não é suficiente, reforça-se localmente. Faz-se um maciço apenas onde for necessário. Não precisa transformar a laje inteira numa laje maciça.
"Mas deu mais trabalho, ficou mais caro do que fazer uma laje maciça."
Sim, ela ficou mais cara. Mas se o objetivo é atingir 200 km/h, ainda é mais barato fuçar no motor de um Fiat Uno do que comprar uma Ferrari.
No fim das contas, a regra segue a mesma: se o sistema for dimensionado e executado corretamente, ele vai funcionar.
Não é mágica. É cálculo estrutural.
A laje treliçada, mesmo com os ajustes necessários para vencer um balanço, continua sendo uma das soluções mais econômicas e difundidas — e tem a seu favor um trunfo inestimável: a mão de obra sabe lidar com ela. Mesmo que de forma empírica, a expertise já está incorporada ao canteiro.
E talvez seja justamente esse o problema: ela funciona bem demais para quem nunca precisou de um computador para colocar uma obra de pé.
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